Pese embora todo o domínio de Lewis Hamilton e da Mercedes durante a temporada de 2020, a verdade é que atrás do inglês o status quo das restantes equipas sofreu grandes alterações, nem todas reconfortantes.
Eterna candidata ao título mundial, a Ferrari viu o novo SF1000 provar ser um dos piores monolugares a saírem de Maranello e passou grande parte do ano a lutar contra equipas que não deveriam sequer ter a capacidade de se aproximar. O divórcio público com o 4-vezes campeão do mundo Sebastian Vettel também não ajudou nem um pouco a melhorar a sua imagem.
Pierre Gasly e Sergio Pérez ultrapassaram grandes adversidades para se tornarem vencedores de Grande Prémios, mostrando em ambos os casos que os grandes talentos conseguem superiorizar-se nas corridas mais imprevisíveis e dando à Red Bull e Racing Point, respetivamente, atestados de incompetência pela forma como foram tratados.
Dois futuros protagonistas de Fórmula 1, Max Verstappen e Charles Leclerc, mostraram que ganham discernimento a cada nova corrida mas que ainda não estão prontos para fazer temporadas sem erros, o que também ajuda a explicar Hamilton continuar na frente.
A histórica Williams manteve o seu nome mas, de forma chocante, deixou de pertencer à família Williams, passando para o fundo americano Dorilton. Sem qualquer resultado digno de nota nos 3 últimos anos, uma drástica mudança de paradigma era necessária, ainda que dolorosa.
Com a necessidade de trocar o calendário para um com países mais vantajosos às viagens dos membros das equipas no contexto de pandemia, a F1 trouxe de volta alguns circuitos históricos e mesmo algumas novidades. O resultado foi amplamente positivo na apreciação de fãs e membros do paddock. É particularmente importante apreciar os circuitos de 2020: com as dificuldades financeiras da FOM, a F1 estará em territórios como Arábia Saudita e China novamente em 2021.
Mas o momento de olhar para o que aguarda a categoria no próximo ano chegará. Por agora analisamos quem foram os protagonistas em pista deste ano.
1 – Lewis Hamilton
A imagem de Hamilton a ficar com um furo em Silverstone na última volta e a arrastar o Mercedes W11 em 3 rodas até à linha da chegada para vencer é provavelmente a imagem de marca do piloto em 2020. O chefe de equipa, Toto Wolff, realçou que a maneira como o seu piloto lidou com os dois setores finais, em que andou no limite entre ser cuidadoso e manter-se à maior velocidade possível, fez a diferença.
Com 35 anos, o inglês aproxima-se da fase da carreira em que lhe é perguntado constantemente quando pensa retirar-se. Mas a verdade é que Hamilton se encontra na melhor fase da carreira, em que quebrou o recorde de vitórias de Schumacher (e igualou o de títulos), sendo peça essencial para a Mercedes num futuro próximo. Quão próximo? Esse parece ser o empecilho nas negociações de renovação com a Mercedes: Hamilton quer contrato renovável de ano a ano, para além dos valores envolvidos.
Apesar da performance de George Russell no seu Mercedes em Sakhir ter dado munições para os críticos que insistem na importância do carro nas suas vitórias, a verdade é que arrumou Valtteri Bottas a um canto com ainda mais facilidade que o costume, fez uma brilhante pole position à chuva no GP da Estíria, soube manter-se com os líderes na Turquia enquanto o piso esteve molhada para poder vencer quando secou e continua a mostrar sua melhor habilidade: consistência nos dias menos bons. Que foram poucos em 2020.
2 – Sergio Pérez
Um piloto do calibre de Sérgio Pérez ter tido que esperar até depois do final da temporada para saber se ainda tinha lugar na F1 diz algo de terrível sobre como a categoria passou a depender de mais e mais interesses sem nexo. Pior só mesmo o desenrolar de acontecimentos que o levou a ver o contrato de vários anos com a Racing Point, que o mexicano ajudou a salvar da bancarrota em 2018 e onde estava desde 2014, rescindido pela equipa de Lawrence Stroll.
Pérez, entusiasmado no início da época por ter ao dispôr o seu melhor carro de sempre na Fórmula 1, não conseguiu aproveitar da melhor forma nas corridas iniciais até ter de faltar às duas corridas britânicas por contrair Covid-19. No entanto, Pérez fez uso do seu melhor trunfo: consistência. Foi durante a maioria do ano o único piloto, a par de Hamilton, que pontuou em todas as corridas que terminou. Até que, depois de expressar confiança no seu contrato ser respeitado, recebeu a notícia de que, com a contratação de Vettel para 2021, a equipa escolhera o filho do chefe da estrutura para permanecer no segundo carro em vez dele.
Se Lance Stroll tinha até então conseguido resultados similares aos de Pérez, a partir daí nunca mais o viu. De faca nos dentes, o mexicano lançou-se numa senda de excelentes resultados enquanto o colega de equipa ficou a zeros. Começou inclusive a incomodar os Red Bull quando os pódios se sucederam, fazendo cada vez mais a decisão da equipa em desistir dele parecer errada. Até que chegou o Grande Prémio de Sakhir em que foi atirado sem culpa própria para último e subiu posições até à vitória, a primeira da carreira ao fim de 190 GP. O lugar na Red Bull foi o justo prémio.
3 – Max Verstappen
Após a qualificação do GP de Sakhir em que ficou em 3º atrás dos dois Mercedes, Verstappen gracejou na conferência de imprensa que bem podia levar a cadeira do 3º lugar para casa. Foram inúmeras as vezes em que o holandês terminou no pódio com o Hamilton e Bottas. Ou mesmo entre eles. É que Verstappen foi o único piloto capaz de terminar corridas a menos de 30 segundos dos líderes o ano inteiro, em corridas ditas normais.
Com níveis de auto-confiança enormes (e ainda alguma arrogância em excesso) depois de um ano como líder indiscutível na Red Bull e uma cada vez menor propensão a fazer erros, Max Verstappen continua à espera de ter material que lhe dê a hipótese de lutar por títulos. O facto de ter chegado a estar na frente de Valtteri Bottas a certa altura do campeonato diz muito sobre o esforço de Verstappen em 2020 (e de Bottas também, por motivos diferentes…).
A performance no Grande Prémio dos 70 Anos foi tudo o que Verstappen tem de melhor. Desobedeceu às ordens da equipa de poupar pneus, argumentando que se deixasse fugir os Mercedes nunca mais os apanhariam. Conseguindo gerir bem os compostos e ser agressivo, Verstappen ultrapassou ambos os carros alemães, que se debatiam com o desgaste dos seus Pirelli, e venceu com autoridade.
Assim que lhe derem um carro capaz vai dar muitas dores de cabeça à Mercedes, como também se viu na vitória de Abu Dhabi. Precisa também que seja fiável: por 4 vezes abandonou com problemas mecânicos sem culpa. Sem eles teria feito Bottas passar a vergonha de ser batido no campeonato quando este tinha, possivelmente, o melhor carro de F1 de todos os tempos.
4 – Pierre Gasly
É difícil de menosprezar o inferno que Pierre Gasly viveu em 2019. Incapaz de oferecer qualquer resistência a Verstappen na Red Bull, o francês foi despromovido de volta à Toro Rosso no mesmo fim-de-semana em que o amigo de longa data, Anthoine Hubert, morreu na prova de Fórmula 2. Recusando-se a ser deitado abaixo, o piloto fez uma sequência de pontos competente até fazer o seu primeiro improvável pódio no Brasil. Para 2020, Gasly conseguiu trazer um andamento semelhante.
Pontuando de forma consistente nas primeiras 7 provas do ano, Gasly estava longe de saber que um erro terrível da Mercedes o atiraria para a liderança do GP de Itália. Mas quando isso aconteceu, depois de ter ultrapassado Lance Stroll, o piloto da AlphaTauri (Toro Rosso de cara lavada) soube aguentar a pressão imposta por um combativo Carlos Sainz nas voltas finais com confiança para triunfar pela primeira vez (e dar à equipa de Faenza a segunda vitória de sempre). Os festejos contemplativos de Gasly no pódio de Monza na ausência do público tornaram-se uma das definitivas imagens da F1 em 2020.
Com a segurança caraterística de pilotos que conquistaram o primeiro triunfo, o francês continuou em grande nível no resto da temporada com brilharetes nos GPs de Eifel e Portugal. Em Imola fez uma qualificação brilhante e merecia não ter tido o problema mecânico na corrida que provavelmente lhe roubou um pódio.
A renovação para 2021 foi natural, mas Gasly já mostrou desejo de regressar ao desafio Red Bull. A marca austríaca não parece com vontade de admitir o erro na sua demoção, pelo que o futuro do talentoso piloto pode passar por outras paragens para 2022 (possivelmente, na vaga de Ocon na Alpine).
5 – Charles Leclerc
Com a vitória no Grande Prémio de Itália em 2019 (a primeira da Ferrari desde 2010), Charles Leclerc tinha dado a sensação de ter carimbado a sua ascensão de jovem promessa a futuro líder da Scuderia, e de ter ditado o fim a médio prazo da presença de Sebastian Vettel na equipa. Antes sequer da temporada começar, e mais cedo que o esperado, Vettel recebeu a notícia de que no final de 2020 não teria o contrato renovado. Leclerc chegou, por isso, ao primeiro GP de 2020 já a saber que seria o líder da equipa a partir desse momento.
E foi justamente isso que Leclerc fez durante o ano. A tarefa foi enormemente dificultada pelo facto de a Ferrari ter produzido o seu pior carro em décadas, que fez ambos os pilotos passarem a vergonha de não passar o Q2 em Monza. Mas o monegasco não baixou os braços e batalhou contra a maré sem perder o ânimo, justificando inteiramente a aposta da Ferrari. Logo na primeira corrida, Leclerc aproveitou a confusão para terminar em 2º lugar. O piloto conseguiu ainda outro pódio na primeira corrida de Silverstone, além de conseguir uma sequência de sete corridas a pontuar.
Houve, contudo, espaço para erros que o impediram de estar mais acima nesta lista. O incidente com Vettel na Estíria, numa altura em que a equipa queria desesperadamente acumular quilómetros poderá ter atrasado a recuperação da Ferrari. Perder o controlo do carro na Parabólica na casa da Ferrari não ajudou à reputação da Scuderia. E a tentativa de ultrapassagem desastrada a Pérez em Sakhir quando se tinha qualificado bem removeu uma mão cheia de pontos ao seu campeonato.
Afirmando que as adversidades de 2020 o ajudaram a desenvolver-se como piloto muito mais que um ano “normal” de Ferrari o teria feito de outro modo, Leclerc criticou-se a si próprio com frequência como quando recusou ser elogiado pelo engenheiro de pista após o GP da Turquia, considerando que deveria ter gerido melhor a luta com Pérez e Vettel. Também bateu em toda a linha o 4-vezes campeão Vettel, quando está apenas na sua terceira temporada como piloto de F1.
6 – Daniel Ricciardo
O atraso do início do campeonato forçou muitos pilotos a comprometerem-se com assinar contratos para 2021 antes de 2020 sequer ter começado. Em vários casos isto levou a que, quando as corridas começaram novamente, pilotos como Daniel Ricciardo fossem forçados a responder de forma constante a perguntas sobre se estariam arrependidos de terem tomado a decisão.
Com o australiano de malas aviadas da Renault para a McLaren, havia um sério risco que o relacionamento entre os franceses e Ricciardo azedasse (como aconteceu entre Vettel e Ferrari). Em vez disso, e apesar de uma raiva mal-contido do chefe Abiteboul a quente, o piloto dedicou-se de corpo e alma ao projeto da Renault durante o ano e a equipa fez o mesmo de volta. O resultado foi uma boa temporada com ótima fiabilidade, que, ironicamente, fez aumentar as perguntas sobre a sabedoria da saída para a McLaren.
Vencendo a aposta com Abiteboul, em que o chefe da Renault teria de fazer uma tatuagem se conseguissem um pódio, Ricciardo fez dois pódios durante o ano, tendo novamente a oportunidade de festejar com o seu já conhecido shoey. Arrumou o novo colega de equipa Ocon a um canto durante o ano quase todo e deixou-se ser o líder que a equipa pensava ter para além deste ano. Resta ver se a forma ascendente da equipa não beneficiará o seu substituto, Fernando Alonso.
7 – Carlos Sainz
A pujança da McLaren no início do ano, a excelente forma do colega Norris, a triste figura que fazia a Ferrari e nem ter conseguido partir para o GP da Bélgica, onde foi visto a abanar a cabeça a cada ultrapassagem aos carros da equipa com que assinou para 2021: tudo parecia conspirar para que Carlos Sainz tivesse um 2020 terrível.
Mas depois veio Monza, em que Sainz dominou por completo o colega de equipa e andou a corrida inteira apenas atrás de Hamilton. O timing do Safety Car acabou por fazer a diferença entre a primeira vitória e o 2º lugar. Sainz estava inconsolável mas o ímpeto tinha voltado ao seu ano. Envolvido em dois fortes acidentes nas corridas seguintes, Sainz lançou mãos à obra e pontuou seis vezes seguidas entre os sete primeiros e voltou a mostrar a forma que levara a Ferrari a escolhê-lo para substituir Vettel em 2021.
Colocando Norris sob controlo na segunda metade do ano, o espanhol deu a volta àquele que poderia ter sido um ano frustrante. Ainda corre o risco de ter sido: a McLaren está a fase ascendente e poderá ainda arrepender-se de não colocar mais fé nos ingleses, mas a confiança que transmite na sua condução tem tudo para jogar bem com a de Leclerc na Scuderia em 2021.
8 – Lando Norris
Depois de ter dito no final de 2019 que precisava de maior seriedade para melhorar em 2020, Lando Norris conseguiu o início de temporada com que terá sonhado durante a longuíssima pausa de Inverno. Com um pódio na primeira prova da Áustria e uma sequência de ótimas ultrapassagens na segunda, o inglês fez depois uma sequência de seis provas a pontuar que o colocou na luta pelo 4º lugar do campeonato e muito à frente do colega de equipa.
Tivesse o ano terminado por aí e Norris estaria muito acima nesta lista. Só que ficar a zeros em três provas seguidas não o ajudou (apesar de não ter sido o culpado em nenhuma das ocasiões), nem ser batido com alguma frequência nas restantes por Sainz.
Ainda assim deu boa conta do recado e mereceu amplamente a renovação para 2021. Passará a contar com motores Mercedes no próximo ano, bem como a companhia de Ricciardo (que tem um historial de vitórias, pódios e terminar na frente de colegas de equipa). Ou seja, terá de repetir os bons momentos de 2020 e aprender a ser mais consistente para aproveitar os dois anos de experiência McLaren a mais que o futuro colega.
9 – Nico Hülkenberg
Sem lugar na Fórmula 1 de 2020, depois de 10 anos na categoria, Nico Hülkenberg era um dos favoritos dos fãs para voltar ao grid. Com a pandemia a retirar Pérez de cena durante duas corridas, Hülkenberg foi chamado de emergência sem nunca ter pegado no carro (e não pegar num F1 durante os 8 meses anteriores) e mesmo assim conseguiu entrar no ritmo com surpreendente facilidade.
Impedido de participar na primeira prova de Silverstone por problemas mecânicos, o alemão conseguiu preparar-se a sério para a segunda e qualificou-se em 3º lugar na frente do colega Stroll, apenas terminando a prova atrás dele quando teve de parar inesperadamente (a equipa disse que foi por medo de um furo, as más línguas que foi para impedi-lo de terminar na frente do filho do chefe).
A segunda chamada veio quando Stroll teve os seus próprios problemas com Covid-19 na Alemanha e foi ainda mais tardia: os primeiros quilómetros chegaram apenas na qualificação. Começando do fundo da grelha, Hülkenberg recuperou posições com maestria (a usar um capacete Renault por ser o único à mão) e conseguiu contribuir com 4 pontos para a equipa. Stroll demorou 4 corridas a bater esse total.
2020 provou aquilo que já se sabia: Hülkenberg tem talento de sobra para estar na categoria e merecia uma carreira com mais recompensa que a que teve.
10 – George Russell
Segundo ano na F1 e segundo ano de George Russell como líder da equipa Williams. Sempre atento a possíveis vagas na Mercedes, o piloto inglês bateu Nicholas Latifi com facilidade em qualificação mas não conseguiu estar no momento certo nas horas cruciais e teria ficado atrás do canadiano em circunstâncias normais.
A maneira como perdeu o controlo atrás do Safety Car em Imola foi um golpe de que não precisava mas a temporada ofereceu-lhe a chance de se redimir. Premiado com o lugar de Hamilton na Mercedes em Sakhir, Russell sabia o que tinha de fazer: chegar à equipa campeã do mundo e impôr-se contra Bottas (na Mercedes desde 2017). Ficando a milésimas do finlandês em qualificação, Russell passou o colega de equipa temporário em duas ocasiões distintas na prova com confiança.
Apenas dois enormes golpes de azar lhe retiraram a vitória. Mas a mensagem que passou a Toto Wolff e Valtteri Bottas foram claríssimas: Russell é o futuro ponta de lança da Mercedes. A lembrança de todo o seu talento mudou por completo a conversa à volta do inglês. De incerto na renovação com a Williams um mês antes, Russell começou a ser cotado para o lugar de Bottas no segundo em que o contrato deste terminar.