O último ano foi de sentimentos muito mistos para a Fórmula E.
Houve uma corrida bem problemática em Valência que a categoria procurou diminuir até compreender os danos de imagem provocados. O modelo de negócios da categoria, baseado em trazer o desporto até ao público das cidades foi afetado severamente com a impossibilidade de concentrar pessoas em plena pandemia. Audi, BMW e Mercedes anunciaram o seu abandono.
Mas também houve um campeão novo sob a forma de Nyck de Vries no seu Mercedes, um triunfo bastante popular. Também ocorreu um dos melhores e mais bem-disputados e-Prix de sempre no traçado completo do Mónaco, expondo o quanto os carros de F1 são maus em promover ultrapassagens. E houve inscrição provisória da McLaren na categoria, evitando que a grelha seja composta de 22 carros por mais do que um ano.
Alejandro Agag está, portanto, a liderar uma categoria de automobilismo que enfrenta uma encruzilhada. Os custos baixos até aqui promovidos tinham vindo a aumentar as marcas envolvidas mas agora começaram a voltar-se contra a Fórmula E: foram conseguidos às custas de baixar o desenvolvimento tecnológico, algo que levou à saída da Mercedes (apesar de Agag dizer que não entendeu). E nem estavam a funcionar. A escalada de custos estava a deixar equipas para trás e levou ao recente anúncio de que um tecto orçamental de 13 milhões de euros a partir de 2023.
Esta disposição de corrigir erros tem sido o grande trunfo da categoria de Agag. O muito criticado sistema de qualificação vai ser mudado para este ano, com um novo sistema de eliminatórias. O caos de Valência será evitado no futuro com as novas normas sobre quando retirar energia durante Safety Cars. Adapabilidade é a palavra-chave para a Fórmula E, e é o que os tem levado a sobreviver até aqui, contra as expectativas de muitos.
Com a nova Geração de carros a estrear em 2023, 2022 trará um último desafio para a bem-sucedida Gen2. Mas determinar a ordem de rodagem pode não ser tão simples como parece.
Vini, vidi, vici: e agora, Mercedes?
O trajeto da Mercedes no campeonato de Fórmula E assemelha-se a um conjunto de linhas-guia para a formação perfeita de uma equipa campeã na categoria. Os alemães passaram um ano (2018-19) sob a capa de estrutura não-oficial com a HWA Racelab antes de colocarem a estrela de três pontas no ano seguinte e vencerem a sua primeira corrida. Na segunda temporada seguiu-se o título mundial do ano passado. E agora o abandono da competição para final deste ano.
A casa-mãe justificou o fim do envolvimento com os ganhos de conhecimento cada vez mais limitados da Fórmula E devido aos limites de tecnologia aplicados de modo a manter os custos baixos (mesmo assim estima-se que as equipas de topo estejam a gastar entre 55 e 65 milhões de euros por ano), referindo que a Fórmula 1 lhes é mais apetecível nesse quesito (algo que Alejandro Agag não terá gostado de ouvir).
2022 será, portanto, um ano em que não só os membros da equipa procurarão manter os títulos de pilotos e equipas conquistados, como também de chegar a um acordo para a manutenção no grid num futuro próximo. No último quesito, tem corrido o rumor de que a equipa de Brackley possa chegar a um acordo de fornecimento de motores com a Jaguar.
Com a mesma dupla de pilotos, a Mercedes terminou os testes de pré-temporada entre as primeiras classificadas com direito à maior quilometragem de todos. Stoffel Vandoorne estará determinado em provar que foi apenas o azar que o travou em 2021 e Nyck de Vries em provar que não foi campeão só pela hecatombe de Valência (tendo-se mostrado muito defensivo no podcast do The Race sobre o assunto).
Jaguar e Techeetah em busca de vingança
Derrotadas por margens mínimas no ano passado, a Jaguar e a Techeetah apresentam-se a combate este ano com o intuito de corrigir os erros anteriores.
Para a tri-campeã Techeetah será um ano para recuperar a iniciativa, tendo operado em 2021 com um carro que os seus dois pilotos não acreditaram estar ao nível das duas rivais principais (a prova é que ficaram em 3º) e dúvidas permanentes sobre o futuro dos donos da estrutura. As unidades de potência da DS serão fundamentais para Jean-Éric Vergne e António Félix da Costa, bem rápidos nos testes, restando ver como a instável dinâmica dos dois funcionará. Félix da Costa não terá apreciado o que sentiu ser um snub do grupo Stellantis sobre uma participação sua em Le Mans. Já Vergne estará determinado em não permitir uma terceira derrota interna consecutiva para o colega.
Na Jaguar há uma sensação de oportunidade perdida, depois do melhor ano da equipa na categoria. No entanto, há vários fatores mitigantes que os entusiasmam para este ano.
A contratação de Sam Bird deu à equipa um rival à altura de Mitch Evans, com os dois a cooperarem de forma relativamente harmoniosa em 2021. Os regulamentos estáveis para o novo ano e um segundo ano de parceria entre ambos só poderão dar alento aos britânicos para finalmente atingirem a glória máxima de uma fórmula a que pertencem desde 2016.
Nissan e Porsche, quando acordam os gigantes adormecidos?
Se é verdade que as equipas de construtoras automóveis têm vindo a dominar os lugares cimeiros da grelha, a verdade é que há dois que deixaram algo a desejar em 2021.
Nissan e Porsche têm historiais muito diferentes na categoria elétrica, mas algo comum que não gostariam de ter: 0 vitórias.
No caso da Porsche houve doses generosas de azar à mistura. O e-Prix de Puebla devia ter dado a Pascal Wehrlein e à equipa alemã a sua primeira vitória mas uma desclassificação por razões que não influenciaram a performance foi um golpe cruel. A equipa acabaria o campeonato atrás até das privadas Virgin e Venturi, muito por culpa de um ano terrível de André Lotterer. O segundo piloto da equipa envolveu-se em constantes incidentes quando 2021 pedia consistência em pontuar.
A manutenção da mesma dupla de pilotos foi a justa recompensa de Wehrlein mas uma bóia salva-vidas para Lotterer. Um recuperar do segundo será de enorme influência nos resultados da marca, até porque os tempos da pré-temporada não foram terríveis.
O comprometimento da Porsche com a categoria também parece sólido: intensificaram-se os rumores de que poderão fornecer a Andretti para a Geração 3, inclusive.
Já a Nissan, operada pela DAMS, tem vindo a entrar numa estranha espiral de queda de performance. O melhor piloto da estrutura, Oliver Rowland, abandonou por sentir não estar a ser levado a sério. O seu substituto, Maximilian Günther é uma boa escolha (desde que saiba temperar os excessos que o caracterizaram na BMW).
Contra os japoneses jogam dois fatores: Sébastien Buemi e o ritmo do novo motor. Buemi, campeão de FE e de WEC, passou um ano humilhante em 2021, batido em toda a linha por pilotos que tinha a obrigação de estar equiparado. Se não recuperar em 2022, nem o carro o deverá ajudar: Valência pareceu mostrar que a Nissan está em antepenúltima em performance pura…
Número de “privados” aumenta
A saída de cena de Audi e BMW não foi acompanhada por todas as estruturas. A Envision (ex-Virgin) continuará no ano final da Geração 2 com propulsores da Audi, enquanto que a Andretti fará o mesmo com a BMW. A julgar pelos testes de pré-temporada poderemos ver ambas as estruturas com mais dificuldades sem o apoio oficial, ainda que tenham mantido os seus pilotos de 2021 (exceção para Oliver Askew, novo na Andretti).
Robin Frijns (Envision) e Jake Dennis (Andretti) fizeram grandes temporadas no ano passado e será interessante ver o que conseguirão fazer neste ano, possivelmente com um olho em estruturas melhores para 2023. Já Nick Cassidy terá que ser mais consistente para manter o seu espaço na Envision.
A privada mais perigosa, no entanto, deverá ser a Venturi. Com energia Mercedes, Susie Wolff a CEO, o vice-campeão em título na forma de Edoardo Mortara e o campeão de 2016-17 Lucas di Grassi a procurar refúgio pós-Audi. São argumentos de muito peso para um ano em que nada mudou “a sério” na categoria, e terem sido a única equipa a descer aos 1m25s7 foi uma boa demonstração da força que esta Venturi poderá ter nas circunstâncias certas. Com um Mortara sempre capaz de fazer mais do que o equipamento em mãos e di Grassi a não querer ser batido pelo novo colega, é difícil que não estejam reunidas as condições certas.
Quem continua a não parecer ter as estrelas alinhadas para mais uma temporada são as duas equipas do final da grelha, Dragon/Penske e NIO. No que toca à equipa de Jay Penske o que parece faltar é uma direção clara. A manutenção de Sérgio Sette Câmara parece acertada mas resta ver que motivação terá Antonio Giovinazzi no seu exílio da F1 e que género de potência estará o próprio motor a debitar.
Na NIO o sempre competente Oliver Turvey (um de 3 Olivers na grelha) carimbou o passe para mais um ano de competição e receberá a companhia do mercurial Dan Ticktum, vindo da Fórmula 2 (o inglês demonstrou alguma dificuldade em ganhar velocidade nos testes). Os orçamentos mais baixos da FE (10 milhões de euros) não estarão a ajudar a sair do buraco de performance (ou falta dela).
Por último vale a pena referir a Mahindra, geralmente capaz do melhor e do pior, que misturou a ótima decisão de assinar com o rápido Oliver Rowland e a terrível decisão de ficar com o mais lento dos dois Alexander de 2021 (Sims em vez de Lynn). Mas em 2021 houve direito a vitória da equipa de Dilbagh Gill, e nunca é inteligente descontar de consideração os carros indianos.
Menos rondas duplas, mais países?
O rascunho do calendário original da Fórmula E estava cheio de boas intenções. Havia provas na África do Sul, um regresso à China e a Marrocos, e uma quantidade muito mais pequena de rondas duplas (utilizadas para disfarçar a ausência de vários e-Prix). Só que a realidade teve a ideia de atirar com esse calendário pelos ares.
A África do Sul foi o local de chegada da nova variante de Covid-19, enquanto que Marrocos e China não quiseram eventos da dimensão da categoria. Pelo menos não enquanto os números de infetados estiverem como presentemente estão. Assim, foi necessário que Roma e Berlim fossem provas duplas novamente, e a FE ficou com um espaço de 2 meses sem corridas entre Fevereiro e Abril. Para já. Resta ver se não serão necessárias mais adaptações.
Nem tudo são más notícias. Desta vez os e-Prix começarão em Janeiro, ao contrário do que ocorreu em 2021. A Cidade do México está de volta. A Indonésia, a Coreia do Sul e Vancouver têm estreias planeadas para o final do ano e são algumas das mais antecipadas pelos pilotos. Um acordo foi obtido para a continuação do Mónaco em anos consecutivos.
Assim, ainda há potencial para 16 corridas entusiasmantes em 2022.
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Fontes:
– The Race \ Budgets FE
– The Race \ Porsche e Andretti
– The Race \ Tecto orçamental