Não deixa de ser irónico que num ano em que apenas duas corridas não foram vencidas por monolugares equipados por Porsche ou Jaguar, ambas as marcas tenham tido um ano extremamente frustrante. É que ambos os títulos pertenceram a equipas clientes de ambas, deixando os chefes de equipa com conversas bastante constrangedoras a ter na sua avaliação de desempenho com a casa-mãe.
A Jaguar deu tiros nos próprios pés, com Sam Bird a eliminar o colega de prova duas vezes e mesmo Mitch Evans acidentou-se sozinho num momento crítico, mas a Porsche dificilmente tem uma justificação tão simples. Mesmo com a contratação de António Félix da Costa para dar a Pascal Wehrlein uma concorrência mais próxima, a equipa parece incapaz de desenvolver o seu carro ao longo de uma temporada de forma eficaz.
A Andretti foi uma estrutura de um só carro (André Lotterer foi humilhado com apenas 23 pontos contro os 229 do colega campeão, Jake Dennis), a Envision viu um título de construtores premiar a dupla mais competente do ano e a DS Penske fez um sólido primeiro ano de cooperação (vencendo a sua primeira corrida).
Mas foi também um ano de grandes desilusões. A Mahindra falhou por completo o ano, culiminando num problema de suspensão que os obrigou a abandonar uma prova antes de partir e arrastando a cliente ABT para os dois últimos lugares na grelha. Oliver Rowland bateu com a porta na Mahindra antes do ano terminar, enquanto que Robin Frijns foi anónimo na ABT (além de ter partido um pulso na ronda inaugural).
Enquanto isso, a McLaren foi procurando arranjar o seu espaço fora da esfera Mercedes, a Nissan e NIO parecem finalmente estar no caminho da recuperação e a Maserati transformou o seu início penoso numa estrutura capaz de pontuar com regularidade e até vencer (ainda que Edoardo Mortara tenha sido um surpreendente peso morto).
1 – Nick Cassidy
Geralmente uma presença discreta ao lado de rivais mais badalados, Nick Cassidy estreou-se na Fórmula E em 2021 com a Envision ao lado do cotado Robin Frijns e foi construindo o seu espaço com 2 pódios e 2 poles. Mesmo entre os estreantes do ano, Cassidy não passou para o topo da lista de ninguém, e apesar da primeira vitória na categoria em 2022, o neozelandês voltou a ser batido internamente por Frijns.
A saída do neerlandês pela entrada do campeão Sébastien Buemi e o estatuto de equipa privada da Jaguar por parte da Envision pareciam limitar naturalmente a progressão de Cassidy. Mas alguém se esqueceu de informar o piloto disso.
Com uma consistência de pontuações notável, o neozelandês perdeu pontos para Buemi nas 3 primeiras provas, mas depois arrumou o novo colega a um canto dentro de pista (5 pódios em 6 provas contra 0 em 6) e fora de pista (a maneira como gozou com o suíço pela rádio depois de um incidente entre ambos foi um golpe de mestre, dada a irritabilidade fácil de Buemi). Vitórias em Berlim, Mónaco e Portland colocaram-no firmemente na luta pelo título, e apenas em Jakarta pareceu perder a compostura.
Nas 3 provas finais foram 2 abandonos e uma vitória de ponta a ponta. Nenhum dos dois abandonos foi culpa própria: num foi eliminado por Mitch Evans e no outro pelo colega de equipa. Sem estes contratempos teria muito provavelmente sido campeão.
2 – Jake Dennis
Ninguém esperaria que o título de campeão na primeira temporada da terceira geração de carros de Fórmula E terminasse com uma disputa entre dois pilotos de equipas privadas, e muito menos que a primeira prova do ano caísse nas mãos de uma Andretti como nova cliente da Porsche.
Habituado a ser subestimado desde a sua primeira temporada na categoria, Jake Dennis voltou a ser o líder indiscutível dos americanos, com uma sequência impressionante de terminar no pódio todas as corridas em que pontuou (com exceção da primeira prova de Roma). Não que isto tenha sido sempre por consistência pura. Ao longo do ano foi visível a frustração do britânico com os constantes pódios sem vitória e com a gestão de energia necessária para se manter em disputa pela vitória.
Mas foram precisamente os pódios constantes e a boa gestão de consumo que deixaram Dennis sempre na frente do campeonato ou próximo, enquanto os rivais tropeçavam constantemente. Quando a hecatombe da segunda prova de Roma eliminou os seus rivais, também foi assim que soube estar em posição perfeita para vencer pela primeira vez desde a prova inaugural.
O título mundial foi um justo prémio para a sua consistência de ouro.
3 – Maximilian Günther
É difícil identificar um piloto com a cotação tão baixa quanto a de Maximilian Günther no início deste ano. Tendo provado ser capaz do melhor e do pior na BMW e tendo sido batido em toda a linha por Sébastien Buemi na Nissan em 2022, o alemão só conseguiu um lugar na nova estrutura Maserati porque Nyck de Vries foi chamado para a Fórmula 1. E mesmo assim, só por um ano. Quando na primeira metade do ano o Maserati provou ser lento e pouco fiável, ninguém se surpreendeu de ver o piloto a zeros.
Mas quando a marca italiana começou a mostrar rendimento a meio do ano, começando em Berlim, muitos ficaram surpresos por ver que o primeiro pódio da marca histórica não pertenceu ao sempre consistente Edoardo Mortara, mas sim a Günther. Com a exceção de um abandono desnecessário (incidente com Ticktum) no Mónaco, Günther classificou-se entre os 6 primeiros em 4 das 5 corridas que se seguiram, com direito a 3 pódios e à primeira vitória Maserati em Jakarta.
Com mais de metade dos pontos de Mortara, Günther colocou um problema à Maserati, que apenas o tinha preso a um contrato de um ano e agora terá que correr para o renovar sob pena de ficar com um Mortara bastante desmotivado apenas.
4 – Jean-Éric Vergne
Em quase permanente ligação com as marcas francesas do grupo Stellantis, Jean-Éric Vergne acompanhou a DS na sua saída da Techeetah em favor da pouco competitiva Penske. Seria sempre expectável que a nova DS Penske tivesse uma melhoria da sua performance, mas também que os dois campeões (Vergne e o colega Stoffel Vandoorne) tivessem dificuldade em simplesmente continuarem nos lugares cimeiros.
O que ninguém teria esperado era que, depois de três provas a roçar o fundo da tabela de pontuação, Vergne mostrasse tenacidade suficiente para segurar uma porção significativa dos pilotos do grid em fila única atrás de si em Hiderabade para dar à DS a única vitória do ano.
O resto de ano foi feito de conquistas um pouco mais modestas mas igualmente notáveis, com 2 pódios adicionais e pontuando em mais de metade das provas. O facto de ter terminado com mais de metade dos pontos do colega (que era o campeão em título e melhor piloto dos últimos dois anos) só demonstra bem a dimensão da temporada de Vergne. Assim que tiver carro para mais nos próximos anos deverá ser uma dor de cabeça séria para todos os rivais.
5 – Mitch Evans
Foi talvez o ano mais frustrante da carreira de FE de Mitch Evans, o que é dizer algo. Depois de 6 anos em que integrou uma equipa Jaguar a aproximar-se pouco a pouco da luta pelos lugares da frente, o neo-zelandês foi 3º em 2021, vice-campeão em 2022 (com mais 3 vitórias que o campeão) e em 2023 poderia muito bem ter sido a vez do homem da Jaguar.
Mas as coisas não correram dessa forma. Os enormes talentos de Evans voltaram a estar à vista de todos, com 3 vitórias e 5 pódios, assim como a maneira como voltou a arredar Sam Bird a um canto (acabando com a carreira do colega na equipa, quando havia chegado como um dos melhores da categoria). A má forma no início do ano da equipa e o facto de Bird o ter eliminado em 2 (!) corridas diferentes ditaram mais um título escapado.
Porquê não estar mais acima nesta tabela? Simples. Ao contrário dos outros anos, houve quem mostrasse mais consistência e, especialmente, sangue frio. Depois de uma vitória na primeira corrida de Roma, Evans via-se numa luta a 3 com Dennis e Cassidy quando deitou tudo a perder com uma travagem mal calculada na segunda volta, que entregou o título de bandeja. Mais frieza para evitar um erro imperdoável destes é necessária.
6 – Pascal Wehrlein
Há muito à espera da oportunidade de conseguir estar com consistência entre os primeiros classificados da categoria, Pascal Wehrlein viu-se nas primeiras 4 provas do ano com um Porsche que conseguiu aproveitar extremamente bem as novas regras para dominar e não desapontou: foram 2 vitórias e 3 pódios.
Deveria ter sido o momento certo para começar a fugir no campeonato, até porque o principal rival era Jake Dennis com propulsores da Porsche também, mas o alemão acabaria por sofrer com uma performance muito difícil do carro em qualificação. Os carros da marca alemã até tinham ótimo ritmo de corrida que permitia recuperar posições, mas a desvantagem deixava Wehrlein a não conseguir imiscuir-se no Top 6. E assim os rivais retomaram a iniciativa.
O facto de o novo colega, António Félix da Costa, ter pontuado melhor nesta fase difícil não abonou a favor de Wehrlein. Ainda assim, uma nova vitória em Jakarta ajudou a retomar a iniciativa no combate pelo título. Mas a maneira como se foi tornando mais anónimo à medida que a Porsche perdia rendimento deixa um ponto de interrogação.
7 – António Félix da Costa
Qualquer possibilidade que pudesse existir de António Félix da Costa conseguir competir pelo título em 2023 desapareceu ao fim de 3 corridas, Ainda a adaptar-se na sua estreia com uma equipa nova (e ainda por cima regulamentos diferentes), o português viu o seu colega na Porsche (Wehrlein) assumir os comandos da estrutura com 2 vitórias e um segundo lugar em 3 provas. No mesmo período, tinha apenas pontuado 6 pontos na primeira prova do ano.
Era preciso reagir, e Félix da Costa conseguiu dissipar dúvidas sobre o seu nível de performance com uma vitória na estreia da Cidade do Cabo no calendário, conseguindo vencer com a equipa alemã ao fim 5 cirrudas quando o homem que substituiu (Lotterer) não o fez em 3 anos. A partir daqui o ritmo dos dois pilotos equilibrou por completo, mas a distância na tabela de classificação tornava inevitável a secundarização do português até ao final do ano.
Mesmo quando admitiu publicamente necessitar de ser segundo piloto até ao final do ano, Félix da Costa deixou claro que não seria a qualquer custo. Quando Wehrlein circulava no final do Top 10 em Portland, o colega não se deixou preocupar: atacou Dennis e Cassidy até ao final pela vitória, encurtando pouco a pouco a distância para o outro Porsche no campeonato.
As 4 rondas finais acabaram por ser dolorosas (uma delas literalmente com um acidente em Roma), particularmente a desclassificação por motivos técnicos de Londres quando tinha recuperado de 17º a 2º.
8 – Dan Ticktum
De temperamento explosivo, rasgos ocasionais de grande velocidade, uma inteligência táctica por vezes questionada e ao volante de um NIO 333 que fora penúltimo em 2022, Dan Ticktum não estava no radar de muitos na antevisão de 2023.
Só que o britânico acabou mesmo por ser um dos pilotos mais impressionantes do ano. Ainda sem ritmo para grandes voos, mas marginalmente melhor que o antecessor, o NIO conseguiu almejar lutar por pontos com alguma frequência nas mãos de Ticktum. Um pequeno 10º lugar na terceira prova do ano foi para abrir o apetite, mas chegou ainda um ótimo 6º na Cidade do Cabo. Após Berlim voltou a haver espaço para um novo 6º, a segurar o pelotão.
E nas 3 provas finais, uma delas sob chuva torrencial, 3 pontuações com um 9º, um 7º e outro 9º. Isto permitiu a Ticktum acabar com o dobro dos pontos do colega Sérgio Sette Câmara (e a maioria dos pontos deste vieram de um único resultado), sendo líder incontestado e garantindo o melhor resultado da NIO no campeonato desde 2017-18.
Porquê tão para baixo? Simples: Ticktum continua a ser o seu pior inimigo fora de pista. Quando as coisas não corriam bem, o piloto não hesitou em culpar a equipa (uma das vezes gritando com o engenheiro pelo rádio, enquanto dizia que não compareceria no briefing e pedindo um táxi…). Uma estratégia que vai dificultar as suas possibilidades de obter um lugar melhor na categoria.
9 – Sébastien Buemi
Havia muito a provar para Sébastien Buemi em 2023. Desde a primeiríssima temporada da categoria elétrica que o suíço estava envolvido na estrutura da DAMS sob as suas formas Renault e Nissan, pelo que a mudança para a Envision era interessante por si só. Juntando a isto o facto de há duas temporadas o rendimento de Buemi estar bem abaixo do esperado, depois de já ter sido campeão (2015-16) e vice-campeão (3 vezes), e era grande a expectativa de ver como reagiria.
E a reação foi positiva. No novo ambiente de equipa privada, Buemi começou o ano com 6 pontuações diferentes e 7 corridas, aproveitando a boa forma da nova equipa, além de se ter começado a restabelecer como piloto confiável e regular durante o resto do ano.
Como pontos negativos, pode-se falar de ter sido amplamente batido por Cassidy (que não se deixou intimidar com as reclamações do suíço) e de não ter chegado ao pódio. Mas ter sido um eficaz segundo piloto quando Dennis teve que se contentar com Lotterer já é um grande feito para quem vinha de temporadas tão ineficazes. Agora resta construir um 2024 mais promissor com base num sólido 2023.
10 – Norman Nato
Tendo competido como estreante na Venturi em 2021, com um início particularmente difícil, Norman Nato viu uma vitória na corrida final do ano ser recompensado com… ficar sem lugar. Fazendo uma “perninha” nas duas rondas finais em 2022 pela Jaguar, Nato acabou por merecer o seu regresso com a Nissan para este ano.
Parecia uma excelente prenda, este lugar numa equipa de fábrica com um colega quase estreante, só que podia muito bem ter sido um cálice envenenado com a estrutura que já fora campeã a perder ritmo há várias temporadas e a ficar sem ambos os pilotos no fim de 2022. A primeira corrida até começou com um abandono num incidente em que Robin Frijns ficou com um pulso partido.
Acumulando pontos como pôde na primeira metade do ano, e com a cliente da Nissan (McLaren) a pontuar melhor, Nato soube gerir de forma brilhante as suas provas até que um ótimo 5º lugar em Jakarta provou ser a sua rampa de lançamento para não voltar a largar os pontos. Inclusivamente obteve em Roma o primeiro pódio da Nissan em dois anos, acabando o ano com quase o dobro dos pontos do colega.
A Nissan viu-se assim na frente da McLaren e Nato poderá conseguir ainda melhores resultados em 2024 se a equipa prosseguir a sua trajetória ascendente.