No início da década de 10 do século XXI um piloto decidiu dar um salto para o desconhecido e largar uma estrutura à qual devia em grande parte o início da sua carreira. Para fãs de Fórmula 1 esta descrição soa muito familiar, mas não é uma referência a Lewis Hamilton que aqui é feita e sim a de outro multi-campeão do mundo: Sébastien Ogier no mundial de rális.
Brevemente colega de equipa tanto de Kimi Räikkönen e de Sébastien Loeb nos seus primeiros anos no WRC, Ogier rapidamente sentiu ter chegado a um tecto no seu desenvolvimento como piloto. As escolhas a fazer poderiam ter parecido limitadas a alguém que se encontrava no seu primeiro ano na dominante equipa oficial da Citröen, mas Ogier optou por dar um salto rumo ao desconhecido.
As escolhas do piloto francês, atualmente uma lenda viva do seu desporto, acabariam por moldar grande parte da década da sua categoria de automobilismo, ascendendo além do que muitos esperariam e sabendo provar que era muito mais do que um fruto do equipamento à sua disposição quando a Volkswagen foi abalada pelo escândalo dos motores diesel e começou a retirar-se de competição.
No último ano em que Ogier faz uma temporada completa de competição, vejamos então o seu percurso ao longo dos anos.
Ao serviço da Citroën e o embate com o outro Sébastien
Com um pai fã de Ayrton Senna e um tio que fora piloto de autocross, era essencialmente impossível que Sébastien Ogier não se envolvesse no mundo do automobilismo. Após um período a conduzir karts, começou a competir em campeonatos de rally até triunfar num organizado pela Federação Francesa de Automobilismo em 2005 (o Rallye Jeunes), que lhe assegurou um lugar no Troféu Peugeot 206 (onde conheceu o seu co-piloto de todos rallys de WRC, Julien Ingrassia). No primeiro ano foi o melhor estreante e no seguinte (2007) foi campeão com 4 vitórias.
Esta presença no universo do grupo PSA valeu-lhe um lugar no Citroën C2 no JWRC (Junior WRC), a acompanhar as corridas do campeonato mundial da categoria principal. No Rally do México 2008 venceu na classe e tornou-se o primeiro piloto de JWRC a pontuar no WRC, tal fora o seu ritmo ao longo da prova. Na Jordânia nem uma avaria, que lhe custou 4 minutos parado, o impediu de vencer. Um 2º lugar na prova de casa assegurou-lhe o título mundial e mais uma prenda: o primeiro WRC com um Citroën C4 em que ganhou a primeira etapa no gelo no Rally de Gales.
A Citroën estava interessada nos serviços do francês para a sua segunda equipa na primeira metade do ano, com a segunda a depender dos seus resultados. Ogier assegurou a segunda metade do ano em que obteve o primeiro pódio WRC no Rally da Acrópole, para além de ter conseguido vencer uma prova de IRC do Rally Monte-Carlo no início do ano com um Peugeot. A renovação para 2010 era claramente merecida.
Nesse ano crucial (e após mais uma impressionante performance no Mónaco no IRC), Ogier contaria com a companhia do campeão do mundo de F1 Kimi Räikkönen no outro lugar da equipa. Ao mesmo tempo, na equipa principal da marca, Sébastien Loeb campeão de WRC desde 2004 estava numa das fases dominantes da sua carreira.
Ogier foi consistência personificada nessa temporada. No segundo rally chegou o segundo pódio da carreira no México após um duelo com o experiente Petter Solberg, e depois esteve pertíssimo da primeira vitória na Nova Zelândia mas saiu de pista a três curvas do fim e perdeu para o Ford de Jari-Matti Latvala por 2,4 segundos. Não precisou de esperar muito: na corrida seguinte triunfou no Rally de Portugal sobre Sébastien Loeb.
Com o segundo piloto da equipa principal, Dani Sordo, a deixar muito a desejar, Ogier foi promovido por uma corrida a esta por troca com Sordo. Ficou em 2º lugar na frente de Loeb. Na vez seguinte em que esteve no Citroën ao lado de Loeb, Ogier triunfou no Rally do Japão contra Solberg. Tendo chegado a estar na disputa do título com 3 provas em falta, o francês fizera mais do que o suficiente para conquistar um lugar permanente na equipa principal.
Com a promessa de tratamento igual, Ogier encaminhava-se ainda assim para uma estrutura na qual Loeb era líder incontestado. A seu favor havia o novo carro, o DS3, ao qual ambos precisariam de se habituar. A primeira vitória coube a Loeb, depois de Ogier sair de pista enquanto liderava. Mas o Sébastien mais novo venceu as duas seguintes em Portugal e na Jordânia. E depois o mais velho deu o troco na Itália e Argentina. Em luta pelo título, os dois pilotos começaram a ter episódios de tensão, como quando Ogier forçou Loeb a “abrir” a estrada na Grécia ou quando na Alemanha Ogier se recusou a ficar em 2º por ordens de equipa e venceu, acusando depois a equipa de desrespeito.
Um problema de motor e um acidente deixaram-no a zeros nas duas rondas finais e afastaram-no de uma luta pelo título contra Loeb e o Ford de Mikko Hirvonen. Com Loeb de contrato assinado para mais anos e a Citroën insatisfeita com o ritmo dos bastidores, Ogier e a marca terminaram o seu longo relacionamento. Alguns dias depois, Ogier anunciou que chegara a acordo com a Volkswagen de 2012 em diante.
2013
O grupo Volkswagen estava à algum tempo interessado na entrada na principal categoria de rallys, tendo esperado o momento de alteração das regras que permitissem desenvolver o Polo e em que tivesse o piloto ideal. O momento chegara.
A preparação para a estreia começou num 2012 em que Ogier intercalou entre numerosas sessões de testes com o Volkswagen Polo WRC e a participação na temporada de WRC com um pouco competitivo Škoda Fabia S2000. Ainda assim, o piloto estava com frequência à frente dos rivais de S2000, a ponto de o seu 5º lugar no Rally de Itália ser o melhor de sempre de um S2000 na classificação geral.
Em 2013 o Polo fez a sua estreia. Se haviam preocupações em relação ao nível na primeira corrida no Mónaco, estas desapareceram de imediato. Ogier lutou contra Loeb pela vitória e chegou em 2º. O VW brilhava nas mãos do piloto francês, acompanhado na equipa por Latvala.
A verdadeira prova dos nove viria no Rally seguinte. No frio da Suécia, Ogier tomou uma brilhante vitória, a primeira para a Volkswagen, tornando-se apenas o segundo vencedor a vir de fora dos países nórdicos. Na prova seguinte do México novo triunfo, com 16 das 23 etapas vencidas. Depois chegou Portugal e a margem de vitória foi de 3 minutos sobre o seu substituto na Citroën, Hirvonen. Para ajudar, o campeão Loeb estava apenas em part time na temporada de 2013 após anunciar a sua reforma de tempo inteiro em 2012.
A ausência de um rival estabelecido seria um trunfo para Ogier ao longo do ano. O colega de equipa Latvala também conseguiria contribuir com um triunfo no Rally da Acrópole. Mas daí em diante foram 6 Rallys vencidos em 7 possíveis, e um título mundial conquistado na primeira etapa do Rally de França quando faltavam ainda duas provas adicionais para o fim do ano.
Pelo meio houve espaço para um brilharete na Alemanha, quando subiu de 47º para 17º depois de ter tido uma suspensão partida, e um palmarés de 9 vitórias, 11 pódios e quase 50% das etapas do ano vencidas para acumular o maior número de pontos de sempre da história do WRC e entregar à Volkswagen o primeiro título de equipas, acabando com a hegemonia Citroën.
Performances para além do carro
Os anos seguintes seriam sinónimos com domínio do novo Sébastien na categoria principal de Rallys. Um segundo bastante similar ao primeiro tornou-o um bicampeão mundial e valeu-lhe uma renovação de contrato. Hyundai bem dava os seus primeiros passos, mas os habituais adversários (Citroën e Ford) pareciam simplesmente não ter argumentos para responder. O vice-campeão em 2014 foi justamente o colega Latvala…
2015 e 2016 voltariam a ser títulos de Ogier por alguma margem, ainda que em 2016 o vice-campeão já fosse de outra marca, com Thierry Neuville da Hyundai a segui-lo. Com 4 títulos consecutivos e um escândalo sobre as emissões dos seus carros a gasóleo a agastá-la, a Volkswagen decidiu abandonar no ano seguinte o mundial. Após anos de domínio, muitos aguardavam a possibilidade de ver Ogier a debater-se com dificuldades quando deixasse de ter o poderoso VW debaixo de si.
O francês assinou contrato com a M-Sport, preparadora oficial dos Ford, e guiou pela marca americana em 2017. Na primeira corrida ao serviço da Ford, Ogier acabou com o jejum de vitórias vindo de 2012 da equipa, triunfando no Rally Monte-Carlo. Mas não seria um ano de facilidades. A Toyota juntara-se à contenda e a Hyundai estava mais forte que nunca. Apenas 2 vitórias viriam nesse ano mas Ogier soube acumular uma enormidade de pódios, valiosos perante a ameaça do Hyundai de Neuville (com 4 triunfos). No final, foi mais um título para Ogier seguido de Neuville e do colega de equipa Ott Tänak e a prova de que não importava o carro para o francês dominar a concorrência.
No ano seguinte os mesmos rivais (agora com Tänak na Toyota) provariam ser ossos duros de roer mas o título voltou a não escapar (o 6º consecutivo). A Citroën entretanto tornara-se uma equipa um pouco perdida no pelotão e Ogier decidiu regressar à sua primeira equipa para a regressar aos lugares de topo. Foram 3 vitórias e 8 pódios, um dos melhores registos recentes dos franceses, mas pela primeira vez desde 2003 um Sébastien não terminaria em 1º o campeonato. Neuville e Tänak acabaram na frente de Ogier, com o último a tornar-se campeão do mundo.
No final desse ano o piloto anunciou que trocaria a Citroën pela campeã Toyota no final do ano (Tänak foi para a Hyundai) um ano antes do contrato terminar e mostrando-se pouco impressionado com o desenvolvimento de carro e comunicação interna da equipa. Por seu turno, a Citroën anunciou que abandonaria o WRC e atirou as culpas disso com o abandono repentino de Ogier (se bem que pareceu que os franceses estavam à procurar de desculpas para a saída).
A natureza fragmentada de 2020 atingiu com particular severidade o WRC, reduzindo o calendário que normalmente tinha 14 corridas para apenas 7. Isto significava que não seria possível ter demasiados erros, uma vez que as oportunidades de redenção eram diminutas. Com 5 pódios e 2 vitórias, Ogier, mais uma vez, sagrou-se campeão do mundo na frente do novo colega de equipa Elfyn Evans e do Toyota de Tänak.
Com o anúncio de que 2021 seria o seu último ano a fazer temporadas inteiras, os rivais de Ogier tinham uma derradeira oportunidade para o derrotar. Com um conjunto de Rallys mais bem composto, Ogier voltou a ter que se digladiar com o colega Evans. Num ano em que ambos estiveram num excelente nível, chegaram ao Rally de Monza (última prova do ano) com hipóteses de título e foi justamente entre ambos que ficou a luta pela vitória. No final ficou Ogier na frente por 7,3 segundos, ajudando-o a somar o 8º e, aparentemente, útlimo título mundial.
Legado
É difícil saber exprimir o que o mundial de Rallys perderá com a saída de um talento da dimensão de Sébastien Ogier. Foi com os títulos do piloto que a França ultrapassou a Finlândia como país com mais títulos de piloto na história do WRC, (18) quando em 2004 estava a conquistar o seu segundo… É igualmente difícil separar os “Sébastiens”, como o fim do reinado de um deu origem ao do outro. Entre 2004 e 2021, só o título de 2019 lhes escapou.
Ogier sai categoria principal com 8 títulos mundiais e 54 Rallys vencidos (2º atrás de Loeb em ambos os quesitos). Tornou-se recordista conjunto de maior número de títulos por equipas diferentes (empatado com Juha Kankkunen) e para saber quão bom era há poucas imagens de marca tão presentes no automobilismo mundial quanto a do francês a manobrar os seus carros no Rally Monte-Carlo (venceu 7 vezes no WRC e 1 no IRC).
Em 2022 teremos a primeira temporada sem Ogier desde a sua estreia e aguarda-se com expectativa se voltaremos a ter campeões a intercalarem entre si, ou se alguém conseguirá uma nova dinastia. Pilotos com um palmarés já bastante bom como Ott Tänak e Thierry Neuville aguardam a sua vez, enquanto jovens promessas como Elfyn Evans e Kalle Rovanperä mordem-lhes os calcanhares.
Vale recordar que Ogier ainda não parará por completo: fará um programa parcial em que continuará a ser o mesmo osso duro de roer de sempre…
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Fontes:
– Facebook \ Entrevista Ogier
– Hot Cars \ Carreira Ogier
– Sébastien Ogier \ Biography
– Wikipedia \ Sébastien Ogier