No canal de YouTube oficial da Fórmula 1 é possível ver, escassas horas após a corrida, uma pequena compilação de 6-7 minutos com os melhores momentos do Grande Prémio que se realizou. No Twitter meros minutos depois de uma manobra de ultrapassagem ocorrer, é possível ver um pequeno clip de 30 segundos com a conta da rede social do piloto envolvido a ser indentificada no próprio post.
Estas interações das redes sociais da Fórmula 1 são perfeitamente comuns às de várias outras categorias de desporto, mas são inacreditáveis para fãs de F1 que seguissem a categoria aquando da criação deste blog, em 2010.
Na Fórmula 1 de 2010 era comum ver vídeos de YouTube que mostrassem transmissões (ou parte de transmissões) de corridas a serem rapidamente tirados do ar por desrespeito de direitos de autor pela Formula One Management. As próprias equipas eram banidas de usar nos seus sites vídeos dos seus carros em prova. E os vídeos de melhores momentos de corrida, apenas disponibilizados na arcaico site da F1, por vezes demoravam semanas a aparecer (e muitas vezes mais focados nas celebridades que compareceram ao Grande Prémio do que na ação em pista).
Bernie Ecclestone, o homem que transformara a Fórmula 1 num espetáculo global capaz de mover milhões de dólares por ano, transformava-se lentamente, na última década e meia de gestão da FOM, no responsável pela asfixia que a F1 sofria, num mundo que abraçava as redes sociais para permitir a expansão de negócios. Ecclestone, na altura com 80 anos, também tinha opinado que a Internet era uma moda passageira. Mesmo em 2010 era uma opinião pouco informada.
Por essa razão quando a compra da FOM pelo grupo Liberty Media se concretizou no final de 2016 e a empresa americana tomou como uma das suas primeiras decisões a de libertar vídeos de corridas, compilações e resumos dos testes de Inverno, as secções de comentários encheram-se de mensagens de “muito obrigado, Liberty!”.
Uma sequência de decisões da empresa americana, cuja direção da F1 foi entregue a Chase Carey, foi dando aos fãs uma apreciação cada vez maior do trabalho desenvolvido pela Liberty. Inclui-se aqui a criação do F1TV como serviço de streaming de corridas presentes e passadas da categoria, o regresso da F1 à França e a criação de programas como o Paddock Pass no canal de YouTube da categoria, entre outros.
De um valor de 2,5 biliões de dólares na altura da sua compra pela Liberty a categoria valia no início de 2020 10,6 biliões. Mesmo com a queda abrupta devido ao cancelamento de corridas deste ano, o valor já recuperou para a região dos 8,6 biliões.
Conteúdo é rei… por um preço
É difícil de marcar numa linha temporal um ponto preciso em que os fãs de Fórmula 1 tenham passado de uma disposição aduladora para uma de análise mais crítica dos negócios que a Liberty tem feito na categoria. Mas indiscutivelmente o estado de graça terminou há já algum tempo.
Em primeiro lugar, temos assistido a uma monetização crescente da F1 dos seus conteúdos digitais. O popular programa Paddock Pass de Will Buxton, muito seguido no canal de YouTube da F1, passou antes para o site oficial este ano. A análise dos momentos críticos das corridas (de Jolyon Palmer) passou a estar completa apenas no F1TV pago, com o YouTube a ficar com a versão condensada. Apesar da insistência agastada de Buxton, a certo ponto desta temporada, de que o seu programa continuava acessível “de borla”, a tendência da F1 em puxar olhos para os seus próprios recursos digitais tem sido visível.
Havia também a esperança que a nova liderança da categoria parasse o êxodo dos direitos de transmissão da Fórmula 1 de canais públicos para canais pagos. Nada mais longe da verdade, quando até na Alemanha se vê a RTL a perder os direitos para a concorrente paga, a Sky Deutschland. Em Portugal chegou a ocorrer o triste espetáculo da Eurosport que, depois de grande pompa e circunstância em anunciar que comprara os direitos à Sport TV, transmitiu as primeiras 4 corridas do ano normalmente antes de colocar a sua cobertura de F1 atrás de uma pay wall. Sem surpresa, com a fúria generalizada de espectadores, terminou a experiência, com os direitos agora a pertencerem à Eleven Sports.
No que toca ao calendário, a ação da Liberty não foi a injeção de melhores circuitos que se esperava. A proliferação de pistas aborrecidas e em países sem tradição, levada a cabo por Ecclestone, não foi revertida. Sim, a França e a Holanda estão de regresso ao calendário, mas Azerbaijão e Rússia continuam. Abu Dhabi continua a conseguir comprar a vaga de última corrida do ano, dando à insonsa pista a oportunidade de decidir lutas pelo título. As tentivas de conseguir uma segunda corrida nos EUA em Miami ou em Las Vegas continuam a esbarrar em empecilhos cada vez mais previsíveis.
Carey, vale a pena ressalvar, conseguiu uma conquista importante: a assinatura do Pacto de Concórdia novo em vigor a partir do próximo ano, que procurou mudar a mentalidade dos signatários para uma de cooperação pelo futuro da categoria e que toma alguns importantes passos em direção a uma distribuição de lucros mais igualitária. Foi logo após este Pacto que o americano deu o seu trabalho por terminado, anunciando que a partir de Janeiro será Stefano Domenicalli o novo líder da FOM.
O homem da Liberty, apesar de tudo, sofreu algum desgaste de imagem neste último ano. O exemplo mais gritante foi sem dúvida a atabalhoada maneira como terá tentado influenciar o governador do Rio de Janeiro a avançar com a construção de uma pista na cidade para substituir Interlagos, apesar dos mais do que conhecidos distúrbios ambientais que provocaria. Como a F1 está a promover a sua imagem “We Race As One”, baseada no respeito, o contraste não caiu bem.
A ascensão da Motorsport e o fim da imprensa independente
O tomar das rédeas da F1 pela Liberty tem coincidido com um processo preocupante que tem ocorrido nos meios de comunicação do desporto automóvel: a crescente influência da Motorsport Network.
Uma empresa internacional de media e tecnologia, a Motorsport tem vindo a adquirir um portfólio enorme de publicações: desde as históricas Autosport e F1 Racing inglesas, passando pela holandesa GP Update, a Sutton Images e várias outras, incluíndo uma participação na Formula E Holdings Limited (que organiza o campeonato de Fórmula E).
Com estas aquisições a empresa tem conseguido obter o potencial para controlar como uma grande quantidade da imprensa de F1 publica, fazendo soar o alarme entre a comunidade de jornalistas independentes.
Este ano, devido às restrições da pandemia, a Fórmula 1 tem limitado o acesso de jornalistas ao paddock físico, passando muitos membros da imprensa para entrevistas por vídeo-chamada e deixando a maioria do acesso em pessoa às estações de televisão. Como se sabe, o contacto pessoal com dirigentes, pilotos e outros membros das equipas e dos organizadores é justamente a comodidade mais valiosa da imprensa da categoria.
A situação foi incialmente avaliada como razoável, mas nos últimos meses jornalistas como Joe Saward têm alertado para o facto de a categoria gerida pela Liberty parecer estar a restringir deliberadamente acesso à imprensa escrita, limitando aquilo que estes possam reportar e obrigando os fãs a informarem-se através dos meios oficiais como o site de F1 ou a F1TV.
Recentemente, quando anunciou a sua saída, Carey deu uma entrevista. Não foi através de nenhuma publicação. Foi no canal de YouTube da F1, para o podcast Beyond the Grid de Tom Clarkson. Geralmente interessante e com ex-pilotos e chefes de equipa como convidados, este episódio com Carey roçou a quase propaganda, sem grande contraditório e com Clarkson a certa altura a fazer mesmo a pergunta “que peso psicológico é que isto [a pandemia] tem provocado em si?”…
A questão saudita
Devido à completa reformulação do calendário de 2020 devido à pandemia, a categoria tem registado perdas avulumadas este ano (104 milhões de dólares até agora, para ser mais preciso). Os factores são vários: a ausência de público nos circuitos, o menor número de corridas, os valores mais reduzidos pagos pelas corridas que puderam ocorrer e ainda a questão de valores de patrocínios e direitos de transmissão reduzidos durante os meses sem provas.
Por todas estas questões, o anúncio da assinatura de um contrato de parceria da F1 com a petrolífera saudita Aramco no início deste ano foi de timing excelente. A Aramco juntou-se assim a marcas como Heineken, Pirelli, DHL, Emirates, Rolex e Johnnie Walker, estimando-se que terá assinado por 10 anos com um valor de 40 milhões de dólares por ano. Rapidamente se compreendeu que o acordo viria com alguns favores por trás.
Procurando ao longo dos últimos anos melhorar a sua imagem a nível internacional, a Arábia Saudita tem-se interessado em particular pelo automobilismo para atingir este objetivo. Nas duas últimas temporadas sediou corridas de Fórmula E (bem como um teste de que envolveu a presença de várias pilotos mulheres, às cavalitas do fim da proibição de mulheres conduzirem no país). O passo seguinte mais lógico e esperado desde a assinatura do contrato F1-Aramco era o Grande Prémio de Fórmula da Arábia Saudita, anunciado este mês.
As críticas, pesadas, não se fizeram esperar. A mensagem de “We Race As One” e o logo de arco-íris foram ridicularizados como propaganda da categoria, que é acusada de apenas olhar para o dinheiro saudita a entrar nos cofres. Algumas opiniões interessantes e ponderadas sobre os benefícios de permitir esta aproximação do país do Médio Oriente também foram emitidas.
O problema principal para esta objeção de consciência reside no ambiente incerto que o desporto internacional atravessa. Num mundo de receitas incertas, a Arábia Saudita parece um parceiro razoavelmente estável à Liberty. E a Fórmula 1 esteve mais perto da ruína em 2020 do que à primeira vista poderia parecer.
2017-20
Indiscutivelmente, muito se modificou na Fórmula 1 durante a gestão da Liberty Media.
Várias alterações, imploradas anos antes da entrada dos americanos na categoria, conseguiram finalmente ver a luz do dia mas outras tantas continuam ainda em espera, enquanto problemas novos se avizinham para a F1.
Stefano Domenicalli assumirá os destinos da FOM a partir de 2021, sempre com Ross Brawn por perto no seu cargo de Managing Director. Ambos são competentes, tendo liderado equipas de F1 vitoriosas antes dos atuais cargos. Mas não poderão continuar a deixar passar em branco as oportunidades de fazer melhor.
Os próximos anos serão críticos para o futuro do pináculo do automobilismo, com os rumores de que a Liberty tenciona vender a F1 a outro investidor, com os regulamentos novos de 2022, com a nova distribuição de lucros trazida pelo Pacto de Concórdia e com a necessidade de definir as normas de motores para 2026.
O período de 2017-20 da Liberty na F1 possuiu mais altos que baixos, apesar de tudo. Resta ver como será a nova década.
—–
Fontes:
– Beyond the Grid \ Chase Carey
– GP Blog \ It seems final: GP Brazil moves to Rio after leaked letter from Carey
– Jalopnik \ Bernie Ecclestone Hates These Damn Kids And Their Social Media
– Joe Saward \ Notebook from Bonneville
– Race Fans \ F1 posts $104 million loss in Q3 despite rise in revenue
– Sport Business \ Aramco pays upwards of $40m per year to join F1 top tier