Dan Gurney em 1967 – Flash

16 05 2021

Existe uma regra básica no campeonato do mundo de Fórmula 1: quando se consegue um lugar numa equipa vencedora não se muda de sítio. A chegada a uma estrutura capaz de se bater por triunfos na F1 é o culminar de um processo iniciado por pilotos remontando os seus tempos de karting, um passo que a maioria dos seus rivais nunca consegue na carreira. É a razão pela qual, aquando da sua promoção à Red Bull, Sergio Pérez dizia precisar de se beliscar para garantir que estava mesmo a ter a sua grande oportunidade depois de uma década em equipas do meio da tabela.

O facto de Juan-Manuel Fangio ser o único a ter conseguido títulos consecutivos com marcas diferentes, ou de Michael Schumacher ter abandonado a campeã Benetton para mais tarde triunfar na Ferrari, são meras exceções quando se estuda a história da categoria. Por isso, quando um piloto decide ir diretamente contra esta norma oficiosa, é raríssimo que consiga voltar a atingir o auge anterior. Mas acabou por ser esta luta contra as probabilidades que fez de Daniel Gurney um dos mais respeitados homens da história da Fórmula 1.

Tendo entrado pela porta grande na categoria ao serviço da Ferrari em 1959, Gurney conseguiu a proeza de ser um dos mais bem conhecidos norte-americanos a ter passado no paddock da F1, e por fazê-lo com um projeto americano que permanece como possivelmente o mais bem-sucedido do país até à atualidade. Somou participações e vitórias num vasto conjunto de categorias de renome para além da F1 (como a IndyCar, o mundial de resistência ou a NASCAR) e as suas associações no automobilismo incluem lendas dos circuitos como Jack Brabham, Carroll Shelby e Bobby Unser.

Unser, sobre a apetência de decisões arriscadas e temeridade de Gurney, afirmou em 2019:

Quer dizer, claro, ele tornava as coisas difíceis para ele próprio – mas ele adorava fazê-lo dessa maneira! Era isso que tornava o Big Eagle tão especial.

A dura lição de início de carreira e a aprendizagem sob Jack Brabham

Filho de um mestre da Universidade de Harvard e neto de um inventor, Dan Gurney fez uso do seu espírito criativo para aplicações motorizadas desde cedo ao construir um carro com que correu a 222 km/h nas planícies de sal de Bonneville com 19 anos; e para aplicações militares, atuando como mecânico de artilharia na Guerra da Coreia. Mas a primeira grande oportunidade no automobilismo surgiu quando recebeu o convite para guiar a monstruosidade que era o Arciero Special em Riverside em 1957.

Com motor Maserati, componentes Ferrari e chassis Mistral, o carro provocava enormes dores de cabeça a homens experientes como Carroll Shelby e Ken Miles. Já Gurney adaptou-se perfeitamente, chegando em 2º lugar logo atrás de Shelby na primeira prova. Várias personalidades começaram a prestar atenção ao piloto de 26 anos, nomeadamente um importador Ferrari, Luigi Chinetti, que o colocou a competir em Le Mans pela marca. Por sua vez estas performances atraíram a atenção de Enzo Ferrari, que inscreveu Gurney em 4 provas de F1 de 1959 onde o americano somou 2 pódios e estabeleceu uma amizade forte com o outro piloto, Tony Brooks (que o descreveu como “um excelente piloto e um homem muito encantador”).

Como vários pilotos da sua época, Gurney optou por competir ao mesmo tempo no mundial de resistência e no de F1. O que o distinguiu foi a maneira como se conseguiu adaptar lindamente às diferentes filosofias de condução dos dois tipos de carros. Também o distinguiu dos seus contemporâneos a maneira como identificou a Ferrari como antro de politiquices que queimavam pilotos, optando por assinar para 1960 com a BRM na F1 (e pilotando nesse ano um Jaguar em Le Mans). Os britânicos só lhe souberam dar frustrações e pouca fiabilidade, apenas terminando uma prova (o GP do Reino Unido) em 10º.

Foi também o ano do acontecimento que mais marcou a maneira como Gurney se comportou em pista daí em diante. Uma falha de travões no GP da Holanda lançou o piloto para fora de pista, ficando com um braço partido e levando ao falecimento de um espectador. Gurney passou a ter uma enorme desconfiança de duas coisas: engenheiros de pista e travões. Em relação aos últimos, o americano ganhou o hábito de dar um toque leve nos travões antes de uma travagem forte, para se certificar de que tudo estava bem (“a escola cobardolas de travagem”, gracejava ele). Esta dinâmica viria a dar-lhe uma enorme vantagem sobre os rivais, particularmente nas provas de endurance.

Para 1961, Gurney acabaria por ser tentado pela Porsche a participar no seu novo programa de F1, abandonando a BRM. Durante dois anos representou os alemães com sucesso, acumulando 5 pódios, 1 pole e 1 vitória no GP de França. Os alemães acabariam por fechar o seu programa na categoria devido aos custos demasiado elevados. Apesar de ter sido 4º e 5º no campeonato nessas duas épocas, Gurney viu Graham Hill tornar-se campeão pela BRM em 1962. O americano começou também a tomar o gosto pela participação em provas de NASCAR e IndyCar nos EUA, a juntar ao seu já compacto programa de F1 e Endurance.

Sem contrato após a experiência Porsche, Dan Gurney acabaria tentado por Jack Brabham a integrar a sua equipa de F1 para 1963. Brabham tinha sido campeão em 1959 e 1960 pela Cooper, saindo para formar a sua própria equipa, na qual era o outro piloto. O duo Brabham-Gurney levaria a equipa do australiano até ao 3º lugar desse ano, e em 1964 foi Gurney quem deu à estrutura a sua primeira vitória (novamente em França). O piloto até deveria ter vencido a corrida anterior, mas ficou sem combustível na última volta (conseguiu o troco nesse mesmo ano, no GP do México, que venceu ao aproveitar o abandono do mesmo piloto que lhe roubara a vitória, o campeão em título Jim Clark).

Enquanto corria pela Brabham na F1, Gurney iniciou uma aliança duradoura com Carroll Shelby, guiando em cooperação com Bob Bondurant um Shelby Cobra Daytona em 1964 que os levou ao triunfo na classe em Le Mans. Shelby e Gurney tinham por esta altura já sonhado com a ideia de criar uma estrutura americana capaz de competir com as marcas europeias. Em cooperação com a Goodyear, nascia assim a All American Racers (nome que não fora inicialmente do agrado de Gurney, por o achar algo nacionalista). A AAR fez uso de carros da Lotus nas 500 milhas de Indianápolis (tendo o chefe da marca, Colin Chapman, sido convencido a aventurar-se em Indianápolis justamente pelo piloto americano).

Inspirado pelo exemplo do chefe Jack Brabham, por Shelby e por Chapman, Dan Gurney decidiu que, depois de um 1965 sólido com mais 5 pódios pela Brabham, queria triunfar na F1 com a sua equipa americana.

1967

O nome escolhido para o projeto da All American Racers seria Eagle. O carro denominado Eagle T1G, que teria por objetivo aproveitar as mudanças de regras de motores para 1966, seria equipado por um motor Weslake V12 mas não logo nas primeiras provas, onde teria ainda que contar com um quatro cilindros da Climax. As hipóteses de sucesso nestas condições seriam sempre difíceis. Dois 5º lugares foram o melhor que se pôde obter mas as bases estavam a ser lançadas, e não só na F1. A aliança com a Shelby American em Le Mans continuou, e Gurney teve nas suas mãos um dos mais famosos carros de sempre, o Ford GT40. A marca venceria pela primeira vez na prova com 3 carros nos 3 primeiros, mas Gurney abandonou.

Para dar alguma amargura à primeira temporada com a Eagle, a sua antiga equipa teve um ano de sonho. Os Repco V8 da Brabham revelaram-se bem-sucedidos e Jack Brabham, que Gurney batera nos seus tempos na equipa, tornou-se campeão mundial de 1966. O homem que substituiu Gurney na equipa, Denny Hulme, foi o campeão no ano seguinte.

Para 1967, e já com as melhorias no carro, a Eagle conseguia oferecer resistência aos todo-poderosos Lotus 49 e o seu motor Cosworth V8. Mas apenas quando o Weslake funcionava. Que foi em 2 das 11 provas do mundial de Fórmula 1. Essas duas provas foram os Grande Prémios da Bélgica e Canadá.

Na pista belga de Spa-Francorchamps Gurney partiu da primeira fila com Jim Clark e Jackie Stewart. Com um mau arranque e um problema de motor, o americano conseguiu elevar-se até ao 2º lugar, fez a volta mais rápida da prova e assumiu a dianteira na volta 21, após a qual liderou até ao fim e venceu com mais de um minuto de avanço sobre Stewart. Em Mosport, no Canadá, chegou em 3º. Nas restantes provas o problema era raramente o motor Weslake em si: os sistemas de injeção de combustível ou de óleo eram geralmente a fonte dos problemas. No GP da Alemanha chegou a liderar com 42 segundos de vantagem quando o carro o deixou desamparado a 2 voltas do fim.

Estas demonstrações de velocidade foram combinadas (num espaço de 3 semanas) com uma qualificação em 2º lugar para as 500 milhas de Indianápolis e uma extraordinária vitória nas 24 horas de Le Mans no seu Ford GT40 da Shelby American. Uma vitória que não estava garantida à partida devido às dificuldades no desenvolvimento do carro (tendo o piloto Ken Miles falecido a testar um deles), o caráter “tudo ou nada” com que a Ford encarava a prova, o colega de equipa A.J. Foyt (por ser piloto de ovais e estar, alegadamente, pouco preparado) e as fragilidades do Mk IV (estruturalmente fraco, demasiado pesado, pouco amigo dos travões, difícil de controlar,…). Só que a prova correu às mil maravilhas, com Foyt e Gurney a triunfarem confortavelmente sobre a Ferrari, estabelecendo um recorde (à época) de 388 voltas.

A passagem a lenda viva do automobilismo americano

Após 1967, Gurney passou ao estatuto de lenda viva para os americanos, particularmente por ter criado a mais famosa celebração das provas de carros no mundo, ao estoirar champanhe pela primeira vez quando reparou nos jornalistas que se aproximavam após o triunfo em Le Mans e os encheu de champagne.

Para dar uma ideia da dimensão da fama de Gurney, a revista Car & Driver chegara a começar uma camanha de “Dan Gurney para Presidente” relacionada com as eleições presidenciais americanas de 1964, e que reavivada de quando em vez. Se é verdade que as aventuras da Eagle e da AAR na Fórmula 1 começaram a perder força para 1968, último ano da campanha, com resultados pobres, a verdade é que tal também se deveu a uma mudança de foco das atenções para a IndyCar.

1968 e 1969 foram os dois melhores anos de Dan Gurney no campeonato que na altura se chamava o USAC Championship Car, acabando em 7º e 4º nos campeonatos desses anos nos monolugares da Eagle com direito a dois 2º lugares nas 500 milhas de Indianápolis. O piloto ganhou um hábito de ser “duro” com os seus carros, fruto de uma tendência de “brincar” com melhorias mecânicas, se bem que os seus contemporâneos minimizaram essa alegada antipatia com os carros, recordando que todos os grandes pilotos o são na busca por performance.

Gurney acabaria por se aposentar das tarefas de pilotagem até ao início dos anos 70, terminando a sua carreira de F1 com 3 corridas ao serviço da McLaren (a substituir o falecido fundador Bruce McLaren) e com um triunfo na primeira Cannonball Run em 1971 (uma prova de costa a costa nos EUA) ao volante de um Ferrari 365GTB/4 Daytona com o co-piloto Brock Yates, à média de 130 km/h numa distância de 4628 km em que foram consumidos 910 litros de combustível. O carro vencedor faz agora parte de uma coleção privada e é avaliado em vários milhões de dólares.

A partir daí Gurney dedicou-se à All American Racers até o filho passar a CEO em 2011. A AAR sob a sua tutela venceu 78 provas, 8 campeonatos e os seus clientes triunfaram em mais 3. Entre as provas vencidas incluem-se as 500 milhas de Indianápolis, as 12 horas de Sebring e as 24 horas de Daytona. Gurney foi também o autor de uma famosa carta em que convidou outros donos de equipa (na IndyCar) a formarem a sua própria categoria para escapar ao controlo da USAC, e assim nasceu a CART em 1978. A AAR foi também responsável pela aventura do protótipo Delta Wing em várias provas internacionais.

Legado

Uma das queixas mais comuns ao lidar com a análise das estatísticas da carreira de Dan Gurney na Fórmula 1 é o quão pouco estas refletem a inteligência, talento e tenacidade do piloto americano. 4 vitórias não são o espelho perfeito de alguém que conseguiu estrear na F1 pela Ferrari. 3 pole positions não demonstram os 2 títulos mundiais que poderia ter conseguido caso tivesse permanecido na Brabham. 19 pódios não parecem muito até se notar que correspondem a 20% das provas disputadas.

Depois há ainda a polivalência. A capacidade de triunfar em qualquer máquina, de triunfar nas 24 Horas de Le Mans, em provas de NASCAR, numa travessia norte-americana, em corridas de IndyCar. A capacidade de atingir aquele estatuto de “maior que a soma das suas partes” que o levaram a ser considerado como potencial candidato presidencial e o levaram a empreender no sonho da sua equipa americana capaz de se bater com os europeus.

Algumas honras ajudam a fazer justiça ao seu talento, claro. Em 1990 tornou-se membro do International Motorsport Hall of Fame e em 1991 do Motorsports Hall of Fame of America. Também faz parte do Hall of Fame do circuito de Sebring e da costa oeste da Stock Car, entre outras homenagens.

A apetência por tarefas difíceis prolifera pela vida de Gurney, falecido em 2018 com 86 anos, e o piloto brilhou em todas.

—–

“Flash” anterior: Silvio Moser em 1970
“Flash” seguinte: Pedro de la Rosa em 2006

—–

Fontes:
Drive Tribe \ 10 cars that defined the life of Dan Gurney
Grand Prix History \ Dan Gurney
Motorsport \ What made Dan Gurney one of racing’s ultimate heroes
Wikipedia \ Dan Gurney


Ações

Information

Deixe um comentário